C. F.
1. O discurso predominante das conversas de rua é que isto está mal, que os tempos estão difíceis, que vivemos acima das nossas possibilidades, que há uma grande crise, que "neste país" as coisas não andam, que estamos na cauda da Europa...
2. Os impérios do êxito. Porém, lendo as notícias quotidianas, encontramos curiosos e animadores títulos como estes: os quatro maiores bancos privados lucram mais 12 por cento até Setembro; hotéis portugueses duplicaram receitas com o Euro 2004; hotelaria nacional assume liderança no sector na Europa; a empresa X aumenta capital em 100 milhões; Sonaecom com lucro de 13,4 milhões nos nove meses do ano; receitas dos serviços Novis sobem 21 por cento; resultados da celulose do Caima sobem 35,5 por cento, e a Unilever aumenta lucros em 4,3%; outro Banco deve ganhar 270 milhões de euros em 2004; Totta lucra 193,8 milhões até setembro; Banco de Santander alcança 3.169 milhões de lucro (descansemos que não é só em Portugal); acções do BPI podem valorizar 18%; ganhos imperam na bolsa de Lisboa; lucros na Brisa aumentam 33 por cento; resultados da PT devem rondar os 458 milhões; uma empresa de supermercados lucra mais 66%, outra mais que duplica os resultados, outra investe 93 milhões em lojas, uma construtora aumenta 63%; uma seguradora aumenta o lucro em 50 por cento; outro banco ganha 27 milhões no que vai de ano; além disso a vacina contra a varicela chega a Portugal (como é que já cá não estava?) e uma marca de automóveis anuncia aumento de 11% de vendas na Europa e também em Portugal.
Tudo isto é profundamente verdadeiro, e não me obriguem a produzir o ónus da prova.
3. O reverso controverso. Claro que há o reverso da medalha ou o contraponto da situação: um banco pretende despedir 3.000 funcionários (calma, não é português); há poderosos interesses contra o ambiente, denuncia o ministro; o mau tempo tem provocado acidentes "um pouco por todo o país"; Galp volta a subir preço do gasóleo e da gasolina para novo máximo (e aqui manifesto o meu desconcerto pela verificação de que a Galp é sempre a primeira a subir os preços, em vez de os procurar controlar - eis como as empresas do Estado dão o exemplo); e (ai de nós) o Sporting tem um passivo de mais de 400 milhões, o Benfica tem outro passivo de 250 milhões, eles e outros devem ao fisco não sabemos quanto, se calhar nem o fisco sabe, os lucros da TAP caem para metade por causa do petróleo (o que já nem é mau, porque aqui há tempos dizia-se que acumulava só dívidas), aumenta os número dos inscritos nos centros de emprego, os cargos políticos entendem que precisam de ganhar mais (ao menos foi essa uma das propostas da distrital do Porto do partido do Governo)...
Ainda neste número divulgamos uma notícia oficial e triste: que a inflação na União Europeia aumenta de 2,1 em Setembro para 2,5 em Outubro. Já se nota a influência do aumento do preço do petróleo e a consequente dos combustíveis. Quando sobem os combustíveis sobe tudo - e geralmente mais que a influência normal dos combustíveis nos gastos de produção.
4. Lucros e benefícios. Então, se as empresas lucram como se vê, ou se lê, e os trabalhadores e a sociedade não partilham ou partilham pouco dos efeitos de tais lucros, e se muitos são despedidos, e se o governo quer aumentar os vencimentos dos seus trabalhadores apenas ao nível da inflação prevista (que depois se verifica ser sempre inferior á verdadeira), mesmo depois de terem passado dois anos sem aumentos, para onde irá o dinheiro? Se os cargos executivos de algumas empresas são remunerados por valores superiores a idênticas funções noutros países, enquanto o salário mínimo e médio é o mais baixo, e se a prometida aproximação das pensões mais baixas ao salário mínimo fica sempre adiada para melhores dias, tudo isto é sinal que a nossa sociedade e a nossa administração não consegue realizar, ou aproximar-se sequer, de um mínimo aceitável de justiça social.
5. Doutrina social. É sabido que resulta sempre difícil pregar a justiça social aos detentores do capital, para quem o lucro é a alma do negócio. Mas a verdade é que cada vez mais empresários, os mais sérios e honestos, se começam a dar conta, e a agir em consequência, de que uma empresa deve ser entendida como uma comunidade onde os esforços e os benefícios se devem repartir, além da respectiva integração nos esquemas do bem comum e da solidariedade nacional. Ainda há poucos dias era essa uma das conclusões de uma associação de empresários cristãos. Deve lembrar-se que este era e é um dos pontos centrais da doutrina social da Igreja. Quando o esforço honesto poder dar bons frutos, talvez esteja aberto o caminho para uma transformação de mentalidades.
6. Programas. Há dias, num texto de reflexão sobre os Meios de Comunicação social e a sua dimensão cristã, escrevíamos esta contradição: todos censuram certos programas de televisão onde a dignidade e a qualidade humana é esquecida ou vilipendiada. Mas verifica-se que esses programas continuam a ser aqueles a que e a audiometria atribui maior audiência. Mais uma vez se verifica que os juízos morais estão por vezes longe dos bons comportamentos.
7. Religiosidades. Coisa que já aqui comentámos, mas que continua viva e actuante, é o recurso aos conceitos eclesiásticos para caracterizar a acção política ou social. Assim é que não há comentador que se preze que não qualifique as entrevistas (agora suspensas por causa da liberdade de imprensa) na TVI como as homilias de Marcelo ou as missas que "dava" Marcelo na TVI, ou os sermões dominicais de Marcelo nos domingos à noite. Não falemos agora do recurso ao conceito de "paroquial" com qualquer político apoda os conceitos ou atitudes dos outros, como se o adjectivo fosse uma espécie de insulto bem educado. Decididamente, não sabem do que estão a falar.
O que estranha é a contradição: numa sociedade em que políticos e jornalistas sabedores (também há os ignorantes como nós) reclamam o estatuto do espírito laico, de sociedade laica, não lhes parece estranho que tragam sempre na boca o credo social da religiosidade? Ou será que essa é mais uma atitude ou tentativa de rebaixamento da tradição em favor da proclamação dos grandes dinamismos culturais da modernidade?.
8. Dogmas. Há coisas que a gente tem vergonha de dizer para não contrariar os dogmas aceites sem vergonha nenhuma. Numa entrevista deste domingo, o sociólogo António Barreto defendeu que carecem de sentido político as eleições para o Parlamento europeu, e que este deveria ser um reflexo dos parlamentos de cada país membro. Foi o que aqui dissemos alguns meses atrás. Como afirmámos que não faz sentido a eleição directa do Presidente da República no quadro minguado dos poderes constitucionais que lhe são atribuídos. Ainda há-de surgir um dia um ilustre entrevistado que o diga claramente, sem que ninguém lhe faça caso.
Isto tem tanta mais graça quanto nestes dias decorre a eleição do Presidente dos Estados Unidos, o homem mais poderoso da terra, que é feita por um sistema de eleição indirecta por representantes maioritários, método de tal perfeição que quem tiver menos votos pode mesmo ser eleito, como Bush. E até há quem diga que o Presidente americano deveria ser eleito também pelos cidadãos europeus. (Não estou a inventar, houve mesmo quem dissesse!). Propomos que também pelos chineses (sempre eram mais), pelos indianos e pelos iraquianos, afegãos e palestinianos...